quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA II – O EXISTENCIALISMO COMO HUMANISMO EM SARTRE - CONTINUAÇÃO




Este texto é a segunda parte de um estudo sobre Filosofia Contemporânea, notadamente, do existencialismo proposto por Jean-Paul Sartre. Para que o leitor possa compreender o texto abaixo, sugiro a leitura antecipada da primeira parte.




SIGNIFICADO DE FILOSOFIA 

Em Questão de Método há a análise filosófica da relação entre marxismo e existencialismo, notadamente, da existência de uma antropologia filosófica, ou seja, da possibilidade do conhecimento filosófico do homem. Nesse sentido, é necessário compreender o significado da filosofia, ou seja, suas condições de surgimento e sua modalidade de expressão. Compreender o significado da filosofia é diferente de defini-la. A definição está ligada ao seu devir, já o seu significado trata de suas condições de aparecimento e de articulação expressiva, razão pela qual, pode-se falar em filosofias, uma vez que sua manifestação se dá vinculada a condições históricas de aparecimento.

Sartre, dessa forma, afirma que a finalidade de uma filosofia é “dar expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos”. Noutras palavras, a filosofia tem sua contemporaneidade justamente porque ela sempre se manifestada de forma situada, expressando determinada situação histórica, manifestando o tecido das relações sociais de um momento num determinando momento, onde a coletividade e o individuo desenvolvem um perfil de realidade histórica.

Sartre também assevera a relação entre universidade e singularidade, onde a primeira ultrapassa a segunda, ou seja, onde a filosofia de uma determinada época ultrapassa o filosofo que primeiramente a constituiu. Isso se dá porque o sentido atribuído à uma determinada filosofia é vinculada ao filósofo que a construí. Essa singularidade do individuo-autor que a produzira faz com que se possa compreender o sentido da filosofia proposta de forma que o supera enquanto individuo. Por tal razão, o projeto reflexivo sobre o método de Descartes pode ser ultrapassado pela filosofia de Sartre, uma vez que ao articular a consolidação das consequências culturais e ideológicas advindas da singularidade de Descartes, pode reinaugurar a subjetividade da filosofia, permitindo que a burguesia ascendente tivesse consciência de si como classe, opondo-se à uma visão de mundo ao ideário tradicional. De igual forma, essa relação entre a universalidade e a singularidade permite estabelecer o devir do cartesianismo, com suas transformações ao decorrer das mudanças históricas, produzindo novas visões de mundo e de suas expressões.

A vinculação de uma filosofia à sua contemporaneidade a torna insuperável como expressão de sua época porque, ao expressar o movimento geral da sociedade, busca-se a totalidade de sua contemporaneidade. É a constituição de uma visão de mundo que não se reduz ao mero saber organizado, mas envolve outros aspectos da vida individual e coletiva, produzindo uma representação em que todos os pormenores contribuem para a constituição dessa universalidade. É a totalidade a unificação de tudo aquilo que se constitui a própria época, e a que possibilita produzir uma representação que se torna problemática com o decorrer do processo histórico científico, podendo submergir ou transformar-se no processo de mudanças sociais.



SITUAÇÃO E TOTALIZAÇÃO

Essa totalização de uma época onde se pode compreender uma filosofia deve ser articulada com a noção de situação, ou seja, compreendendo os limites que constituem uma época, já a filosofia produzida deve ser entendida como situada numa limitação facticamente determinada. Ao mesmo tempo, essa situação aponta para a possibilidade de totalização, ou seja, para a compreensão completa do sentido do homem que produzira uma determinada filosofia. 

É a relação entre singularidade e universalidade que pontam para a totalização como desejo do individuo, grupo ou classe para que possam ser entendidos, a partir de suas possibilidades e impossibilidades. Essa totalização tem seus limites pela situação, que pode ou não unificar seus elementos, que pode pensar na totalidade e experimentá-la. 

Assim, uma filosofia é a expressão insuperável do seu próprio presente, e de como seus sujeitos viveram a experiência a partir do momento em que os situam no modo da totalização. A verdade histórica dessa filosofia é a compreensão dos seres humanos agindo numa determinada situação que os constitui ao mesmo tempo em que eles a constituem. Tal reciprocidade aponta para o significado da subjetividade na história.



HEGEL E A FILOSOFIA COMO SABER TOTALIZADOR

Hegel explicita a filosofia como saber totalizador ao entender que o projeto filosófico é a constituição do saber sistemático sobre o processo enquanto um todo, entendendo-o na lógica da realidade, e na realidade de sua racionalidade. Noutras palavras, não se analisa o projeto filosófico por fora, enquanto expressão filosófica do seu presente e de sua época totalizada pelo saber, mas visa também que seja a expressão filosófica da própria filosofia, ou seja, a compreensão racional do processo histórico realizado. A realidade (sua natureza e história) não é mero objeto da história, ela é incorpora a si mesma, dissolvida, experimentada. É o saber e a experiência entrelaçados numa conciliação racional. É o que é vivido integrado na universalidade do que se torna absoluto, enquanto expressão verdadeira do processo da realidade.



KIERKEGAARD E A IRREDUTIBILIDADE DO VIVIDO

Se Hegel entende que a contemporaneidade da filosofia se dá com a racionalidade sistemática, onde a totalidade se dá na unificação entre o saber (a razão) e o vivido (a experiência), Kierkegaard o contraria, afirmando a irredutibilidade do vivido. Nesse sentido, existir traz o dilaceramento da subjetividade, o que é irredutível a um sistema de saber onde a subjetividade é incorporada numa totalidade de forma apaziguada. Com a representação da obstinação do individuo, que é irredutível na sua experiência, o filosofo dinamarquês afirma que o sofrimento só pode ser um saber se for explicada pela abstração da existência. A experiência da existência, do sofrimento vivido, faz com que o homem só possa ter a razão absoluta quando for conceitual, quando for pensada de fora de si mesmo, sem haver a identificação da subjetividade na generalidade da síntese conciliadora. Não se tem como a subjetividade se tornar objeto de um saber, uma vez que a mesma desaparece no contexto da totalidade e nos procedimentos conceituais generalizantes. A existência é essa interioridade que colide contra toda filosofia, uma vez ser a subjetividade de uma profundidade infinita que vai além da linguagem enquanto expressão do sujeito com o outro ou com Deus.

Por isso, para compreender o movimento geral de uma época expresso numa filosofia, é preciso entender que não se supera a contradição entre o finito e infinito, ou seja, é preciso entender que Kierkegaard se integra no hegelianismo quando se resiste a soberania da intelectualidade com a sua necessidade de manifestar a realidade essencialmente lógica, passando a considerar a subjetividade enquanto objeto de um saber que pode adquirir sentido pleno. 

Para Sartre, Kierkegaard aponta para o primado da subjetividade contra o primado da razão objetiva. É certo que as realidades da subjetividade somente podem se incorporar ao sistema do saber racional por meio da idealização. No entanto, o filosofo francês diz que tanto Hegel como Kierkegaard tem razão, porque do ponto de vista da totalização, a subjetividade é, ao mesmo uma determinação mediada, que passa por um percurso logico que desvenda a realidade visando se tornar uma totalidade absoluta (devir), e uma experiência concreta da sua própria constituição, já que a originalidade de sua experiência só se pode ser integrada ao saber da totalidade se for dissolvida do seu teor singular enquanto experiência vivida, ou seja, se for idealizada. 

Porém, se considerada a filosofia do ponto de vista de expressão histórica do espirito objetivo de uma determinada época, a subjetividade com sua irredutibilidade da dor, da paixão, do sofrimento atestando uma realidade, só pode ser integrada ao saber da totalidade por meio de uma decisão filosófica sobre a relação entre singularidade e totalidade. Sartre salienta que se há algum saber sobre a subjetividade é porque existe um trabalho sobre as oposições internas ao sujeito e não sobre o que seja a subjetividade mesma, havendo uma distancia entre a realidade e o saber que pode ser intransponível, e em razão disto, essa intransponibilidade de se conhecer a subjetividade em si mesma pode colocar limites para o idealismo objetivo. 



OBJETIVAÇÃO E ALIENAÇÃO

O objetivo de Sartre ao realizar a comparação entre Hegel e Kierkegaard decorre da perspectiva marxista que possuía, onde a objetivação da produção filosófica e alienação não são consideradas como sinônimos, uma vez que se o homem produz e reproduz a realidade, o mesmo deveria se reencontrar na objetivação desta superestrutura de consciência social. O homem não se reconhece no que produz é porque seu trabalho é alienado, em decorrência do conflito entre as forças produtivas e as relações de produção. A alienação se manifesta como realidade histórica irredutível de uma ideia. É necessária uma ação na prática que faça com o que trabalho seja objetivado e não alienado. 

O mundo enquanto conjunto de fatos decorrentes da vivencia e produção humana não pode negar a presença da subjetividade. É necessário que o homem se veja no mundo que ele produziu e que a objetivação aconteça por sujeitos agentes, caso contrário ela se torna alienação, fazendo com que o homem não se reconheça no mundo objetivado. É o primado da ação, onde o homem pode ver o mundo como fruto de sua atuação. E isso significa a representação do homem concreto. A compreensão objetiva do homem, portanto, é considerar sua subjetividade concreta, por meio de sua existência, pela natureza de seu trabalho, na luta contra as coisas e os homens.

Sartre deseja é a perspectiva antropológico-filosófica que se fundamenta com a primazia da ação como decorrente do agente. É a especificidade da existência humana que se configura em ações pela necessidade e pelo trabalho. A realidade objetiva do sujeito é a sua condição original, e não a perspectiva que considera o sujeito como objeto. Sua condição original de objetividade enquanto sujeito é a realidade objetiva. Assim, se o homem é visto como objeto, não se vê essa objetividade da realidade. Sartre associa a objetivação, portanto, ao reconhecimento, o reconhecimento do homem enquanto sujeito. Se isso não acontecer, trata-se de alienação e não objetivação do sujeito.



MARX E A PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICO-FILOSÓFICA

A especificidade da existência do homem e a possibilidade de conhecê-lo na sua realidade objetiva concreta são os requisitos da perspectiva antropológico-filosófica sartreana. Baseado na via da totalização, é com Marx que o mesmo vê o homem como o tema imediato da totalização filosófica, uma vez que considera-se a busca da especificidade da existência. É essa especificidade que faz com que Marx contrarie tanto Hegel como Kierkegaard, pois, mesmo considerando ser a subjetividade enquanto especificidade, isso não é impeditivo para conhecer a realidade objetiva do sujeito, não no sentido cientifico, mas sim na totalidade do homem concreto.

O existencialismo considera a necessidade da dupla exigência (conhecimento da especificidade concreta da existência e o conhecimento da realidade objetiva do homem), pois considera historicamente, que após a segunda guerra fez com que o arsenal político burguês hegeliano desse espaço para a violência do invasor, deixando de ser uma mera cogitação de via teórica para uma experiência de uma situação, de ser uma ideia e expressão de racionalidade.

Por outro lado, o existencialismo sartreano também não pode ser um subjetivismo formal ou abstrato. A subjetividade supera a pretensão totalizadora de Hegel porque é um percurso lógico, uma experiência histórica, fruto da relação entre o individuo e a totalidade, entre a singularidade e a universalidade.



BIBLIOGRAFIA:

SARTRE. Jean Paul. Questão de Método. Tradução brasileira de Bento Prado Júnior. Editora Nova Cultural, São Paulo, 1973, Capítulo I, p. 115-132 (Coleção Pensadores).

SILVA, Franklin Leopoldo e. Unidade II – Considerações sobre Questão de Método (primeiro capítulo). In: Contemporânea I: Guia de Estudos. Lavras: UFLA, 2013.



OBSERVAÇÃO:

Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina "HISTÓRIA DA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA – GUIA DE ESTUDOS" da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA - Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 20/02/2014.

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