terça-feira, 10 de julho de 2012

ÉTICA I - ARISTÓTELES E O PROBLEMA DO MAL MORAL NA ÉTICA GREGA




01) SOBRE A TRAGÉDIA, SÓCRATES E PLATÃO:

A relação entre “ser” e “parecer” bom, tão debatida nos dias hodiernos, fora objeto da atenção de Platão em sua obra A República, porém com uma nova perspectiva, uma vez que se desenvolveu por intermédio de argumentos de diversos interlocutores da obra. O filósofo, por intermédio do personagem Sócrates, relaciona a noção de felicidade à justiça e, assim, considera ser feliz apenas o justo, pois é feliz apenas quem pratica a justiça. O ponto principal do diálogo é justamente relacionar a ética e a política, mesmo isso não representando a realidade, mas sendo uma mera proposição do que definiria uma “boa cidade”.

Na procura pelo o que seria a justiça, em A República, algumas teses foram apresentadas: Céfalo, que entende justiça como o ato de “devolver aquilo que se recebeu”; Polemarco, onde a justiça seria a realização do “bem ao amigo e mal ao inimigo”; e, Trasímaco que a entende como o “interesse do mais forte” (PLATÃO, Livro I, p. 9, 11 e 20). O tirano, que vários interlocutores de Sócrates tomam como exemplo, tem uma cara que todos nos conhecemos: ele é a pessoa injusta que detém o poder tendo em vista sua própria utilidade; é aquele que é capaz a submeter os outros com sua força; é quem cria leis convencionalmente chamadas de “leis justas” e que visam só ao máximo proveito de que detém o poder. O homem bom, isto é, o justo se comporta desta forma só por obrigação. Daí a consequência que naquela época, assim como hoje em dia, “aparecer” é mais importante que “ser”. 


Sócrates entendeu que as duas primeiras teses são facilmente refutáveis, pois são definições muito fracas de justiça, encontrando somente certa dificuldade em produzir uma refutação relevante para a última das teses, porém argumenta que os governantes não são os fortes infalíveis, pois caso não obedeçam às leis, podem criam legislações que sejam desfavoráveis à eles próprios, razão pela qual é que cabe aos governantes visar sempre ao bem dos governados (BOTTER, 2012, p. 18). Ressalta-se que essa refutação socrática revelou-se abstrata, baseada em considerações teóricas e questões de princípios, uma vez que seus refutadores firmavam-se na realidade para produzir suas teses.


No prosseguir do diálogo, Glauco apresenta o conceito de justiça como algo convencionado, onde as leis fazem parte dessa convenção, sendo, portanto, a justiça um compromisso dos homens, ou seja, cumprir o que a lei determina visa a não ser repreendido pelo mais forte. (PLATÃO, Livro II, p. 42-43). 


Assim, Glauco prenuncia o “parecer” em detrimento do “ser”, considerando que ao homem melhor é parecer ser justo, visando assim submeter imperativamente os outros a seu domínio, às suas leis tidas como ‘justas’, podendo tirar o máximo de proveito pessoal e manter a sua governabilidade, mesmo que na realidade haja desigualdades e injustiças. Juntamente com Adimanto, Glauco conclui que a justiça parte de uma organização social.


De igual forma, Platão também desenvolve essa concepção de organização social ao realizar um paralelismo entre o individuo e o cidadão (CASERTANO, 2011, p. 41). Em sua concepção, a cidade se constitui em classes sociais, onde cada qual se determina pela aptidão de seus serviços, ou seja, segundo sua virtude. Dessa divisão em classes, como elementos independentes, porém integrados, tem-se uma unidade, que é a sociedade, a “boa cidade”.


As classes sociais que compõem a sociedade na concepção platônica seriam os governantes que dirigem a cidade, os guerreiros que cuidam da defesa da mesma e os produtores responsáveis pelos bens necessários de sustento da cidade. No paralelismo feito com a alma do individuo, a parte da inteligência responsabiliza-se por dirigir o conhecimento (comparando-a com a cabeça no corpo), a irascibilidade pelos desejos e as paixões (comparando-a com o peito) e desiderativa, pela nutrição e a procriação (comparando-a com o ventre).

Cabe, portanto, a cada classe ou parte distinta da alma cumprir suas próprias tarefas, ou seja, suas próprias virtudes. Somente quando cada função é cumprida por seus responsáveis pode-se tornar o individuo e a sociedade justos, sendo a razão tida como o princípio da organização, partir de onde o individuo governa sua vida particular e os governantes, a cidade. A cidade, portanto, na concepção platônica, é boa e virtuosa quando o cidadão faz aquilo que lhe cabe enquanto virtude, segundo sua classe social, “sem intrometer-se em outras atividades”, o que possibilita a “imagem da justiça”. E é a partir dessa virtude que se manifesta a justiça, pois, caso o cidadão não realize sua própria virtude, estará cometendo injustiça. (PLATÃO, Livro IV, p. 145).

Uma cidade boa é aquela que a mostra com seus atributos ser sábia, corajosa, moderada e justa, sendo a justiça e a temperança atributos dos componentes da própria cidade, porque a temperança que
“faz os cidadãos cantarem a uma só voz”, e a justiça “porque ela espalha largamente o exercício habitual da cidadania e envolve a cidade em seu conjunto” (DESCLOS, 2001/2, p. 18 e 19).

Nesse contexto, o malvado é aquela
“pessoa que não possui sabedoria, isto é, que não exerce a parte racional da sua alma, e assim desconhece totalmente o bem ou o confunde a um bem aparente com um bem real”. (BOTTER, 2012, p. 23).

Destarte, pode-se concluir que Platão, em A República, produziu um discurso paradigmático, propondo um modelo científico de uma “boa cidade”, porém não instanciado numa realidade (CASERTANO, 2011, p. 88). Isso não quer dizer que quando Sócrates propôs um modelo a ser realizado em relação à ética e à política, tratava-se de uma mera utopia. Para que essa “boa cidade” fosse concretizada, algumas mudanças precisariam ocorrer, sendo a principal que os Filósofos governassem – em nossos dias que os Chefes de Estado fossem Filósofos –, uma vez que assim os homens poderiam compreender a diferença entre o “bem real” e o “bem aparente”, onde o primeiro é o parecer justo e não ser, enquanto o justo quer ser tal, porém não aparenta.


Por fim, para ter clareza a respeito dessa distinção, Platão, de forma taxativa, aponta ser necessário o conhecimento e a educação, sendo essa a segunda mudança fundamental, ou seja, o realce ao justo peso à educação, uma vez que a mesma possibilita a capacidade de distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.





02) ARISTÓTELES E A DEFINIÇÃO DA VIRTUDE:


A virtude é entendida por Aristóteles como uma prática e não como sendo mero conhecimento ou algo natural de cada ser humano possui, sendo essa a razão pela qual se faz necessária a sua prática constante como um hábito. A prática da virtude inclina a pessoa para o bem, que é a busca pela felicidade. 

Para o filósofo existem dois tipos de virtudes: as intelectuais (geradas e desenvolvidas pelo conhecimento racional) e as morais (adquiridas propriamente pelo hábito, não sendo inerentes à natureza humana – o que não impede que o homem tenha uma tendência natural à bondade). É o exercício dessas virtudes o responsável por tornar o homem em justo ou injusto, “pois o mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando de um modo ou de outro em igualdade de condições”. 

Sendo as virtudes desenvolvidas pelo hábito, o filósofo as considera como disposições. Nas palavras de Zingano, “a disposição é o modo pelo qual o homem se comporta relativamente às emoções”, ou seja, são as tendências de se agir de forma determinada em determinadas circunstâncias. Uma pessoa virtuosa, portanto, apresenta três condições específicas: 

a) A razão: onde a pessoa precisa age conscientemente e não ignorando o que ela faz. 
b) Agir livremente e não por constrangimento ou constrangido nem visando fins alheios.
c) O virtuoso tem de agir com uma intenção firme, por hábito. 

Ressalta-se que se pode avaliar as ações virtuosas quando se observa a intenção da ação e não sobre a análise das ações do agente da mesma. Uma pessoa é boa ou má, segundo o caráter que escolhera e não em razão de suas faculdades ou da ocorrência de paixões. Apesar de não ser uma emoção, a virtude demanda da mesma para ocorrer, por faz parte do processo desse tipo de caráter que o homem escolhe para qualificar suas ações. Segundo o filósofo, a paixão pode ser determinada pela razão, o que justifica que a emoção seja virtuosa. 

Em Aristóteles, a análise da relação entre a razão e a emoção para a ação virtuosa está ligada à tripartição da alma humana, que entende que a alma é o ato primeiro de um corpo natural que possui a vida em potência. Diferentemente de Platão que, considerando os parâmetros de condutas éticas que observava nos seres humanos, dividia a alma em três partes (concupiscível, irascível e intelectível), Aristóteles divide-a analisando as funções que entendia inerentes aos seres vivos. Segundo o estagirita, a alma é composta por: 

a) parte vegetativa: preside às operações concernentes à geração, nutrição, crescimento, etc.; 
b) parte sensitiva: preside a sensação, os apetites e o movimento; 
c) parte intelectiva: preside o conhecimento, a deliberação e a escolha. 

As partes vegetativa e sensitiva estão relacionadas à matéria, já a intelectiva possui uma operação que não depende da matéria e um objeto que é puramente imaterial: a forma inteligível das coisas sensíveis, que “podemos assim considerar que as emoções se formam a partir de uma cognição – sentir é tomar alguma coisa sob um certo ângulo”

Assim o desejo humano sempre dá com o acolhimento da razão, uma vez que as emoções “podem escutar a razão e, deste modo, aperfeiçoar-se, tornando-se assim emoções moderados pela razão". Dessa relação de coadunação entre os dois lados, pode-se chegar à uma ação reta,ou seja, a parte emotiva da alma e a parte racional da alma são parceiras na formação do caráter do homem, devendo a primeira ser primeiro educada pela segunda, para tanto.

Aristóteles apresenta a disposição como gênero da virtude moral por entender que as virtudes são desenvolvidas pelo hábito, onde a razão prevalece ao ensinar o ser humano como “educar” suas emoções, e dessa forma, estabelecendo tendências de se agir de forma determinada, em determinadas circunstâncias. 

Para tanto, devem ser observados três critérios (BOTTER, 2012, p. 37): 

a) agir conscientemente: onde a razão esteja presente, e portanto, não se ignora o que se faz. 
b) agir livremente: não havendo constrangimentos, nem tendo em vista fins alheios, e; 
c) agir por hábito: possuindo uma intenção firme. 

O homem não se torna justo ao praticar atos justos, antes, se torna virtuoso ao saber agir temperadamente em diferentes situações, sabendo controlar suas emoções. Além disso, os atos justos devem ser a fixidez do caráter do indivíduo, direcionando as suas ações. 

De igual forma, o que difere a virtude moral da virtude intelectual (adquirida pelo conhecimento) é justamente essa possibilidade de ser encontrar a mediedade, em grego mesotes, termo que significa o “meio-termo, justa medida”. 

Essa concepção é fruto da sabedoria grega anterior à época do Estagirita, que indica o encontro de uma via média, onde não há excessos. Como na arte e na medicina, onde o meio-termo preserva a excelência das obras e dos procedimentos, o como na filosofia pitagórica onde significava a proporção e a harmonia da perfeição, ou mesmo como na filosofia platônica onde seria a justa proporção entre as diferentes partes da polis e das partes das almas, Aristóteles utilizasse da mediedade como regra para a análise da moral para a ética. 

A boa medida aristotélica é a necessidade de não silenciar as emoções, pelo contrário, buscar encontrar a exata proporção, uma vez que isso possibilita à ação ser adequada do ponto de vista moral, pois estará ancorada, ao mesmo tempo, em emoções e paixões. 

Essa exata proporção das emoções não diz respeito à coisa, e sim em relação a nós, como o filósofo apresenta ao dizer que: 


“Em qualquer coisa, seja ela homogênea ou divisível, é possível distinguir o mais, o menos e o igual, e isto ou em relação à própria coisa ou em relação a nós [...] cada pessoa que tem ciência evita o excesso e a falta, enquanto busca o meio e prefere-o, e esse meio é estabelecido não em relação à coisa, mas em relação a nós” (EN II 6, 1106a26). 


A originalidade da justa proporção aristotélica é sua diferença em relação a justa proporção matemática, pois retira a análise sobre a coisa, e a coloca em relação à nós mesmos: 


“A posição de meio com relação a nós é interpretada assim: com efeito, se comer dez minas é muito e comer duas é pouco para alguém, não por isso o mestre de ginástica mandará comer seis minas; de fato, para quem receber tal porção, ela pode ser muito ou mesmo pouco: para Milo, de fato, é pouco, para um principiante de ginástica é muito. [...] Assim, cada pessoa que tem ciência evita o excesso e a falta, enquanto busca o meio e prefere-o e esse meio é não em relação à coisa, mas em relação a nós” (EN II 6, 1106a28-b7). 


A análise da mediedade talvez possa não ser inédita em Aristóteles, pois como apontam alguns estudos (GAUTHIER e JOLIF, 1970, p. 138, apud R. PEREIRA, 2010), essa compreensão está inserida em duas das mais conhecidas inscrições da Grécia do período clássico: “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso”. AUBENQUE (2008, p. 264) aponta que a primeira inscrição não diz respeito à necessidade de se encontrar o fundamento de todas as coisas em nós, mas sim alertar-nos para a finitude da vida humana, razão pela qual a prudência enquanto sabedoria dos limites é essencial. 

Nesse sentido, a busca pela justa medida visa à destruição dos extremos (ARISTÓTELES, EN II 5, 1106a25-30). É o equilíbrio entre “sentir excessivo” e a “apatia”, não somente das paixões, mas também das ações, uma vez que as emoções controladas levam à prática de ações moderadas, pois “de modo análogo, também existe excesso, carência e meio-termo no que diz respeito às ações” (1106b25). 

O ser humano, na busca do meio-termo visa conquistar a excelência moral. ZINGANO (2007, p. 146) afirma que a mediedade é a “quididade” da virtude, pois para Aristóteles a razão prática “não pode operar a não ser que existam previamente as disposições morais, isto é, paixões ou emoções moderadas pelo hábito e pelo exercício”

É o hábito que determina os comportamentos humanos em bons ou ruins e assim pode-se encontrar a justa medida relativa a nós em relação às emoções, como é exigida pela razão. A mediedade, em si mesma, enquanto tal, em sua generalidade, é para todos os entes racionais, uma vez que delimita as circunstâncias e aos atos permitidos em cada uma destas, sabendo, portanto, o ser humano, o melhor que se pode esperar em cada circunstância. 

Assim, pode-se concluir que a ação da moral pelo Estagirita passa pelo dualismo da natureza humana: a racionalidade e a irracionalidade, que ao mesmo tempo, necessitam se encontrar e coexistirem. A razão e o desejo, promovem o valor moral do caráter do ser humano, porém somente quando os atos são moderados, determinados, aperfeiçoados pela razão, em detrimento das emoções, que passam a ser “ensinadas” pela razão à controlarem-se. 

A virtude moral é perfeita quando o ser humano satisfaz seus desejos a partir do uso de suas razões, havendo diferenças no modo de agir e em suas disposições. Essa virtude própria, aperfeiçoada pela apreensão da razão, somente se dá quando a parte irracional for determinada pela razão, mudando o simples desejo em um desejo racional. 





03) A ORIGEM DO VALOR MORAL DO ATO: 


A virtude, para Aristóteles, era uma disposição que estava vinculada à escolha deliberada, o que “consiste em uma mediedade relativa a nós, a qual é determinada pela razão, isto é, como a determinaria o homem prudente”. Na busca da ideia de justa medida, “o meio termo é determinado pelos ditames da razão”. É na harmonia entre a razão e as paixões que se pode chegar à virtude. Essa é uma disposição que todos podem ter e, para tanto, se deve fazer uma escolha deliberada, consciente, daquilo que se deseja ao fim, e bem como dos meios para se chegar a tal, sendo sempre guiado pela mediedade. 

Se a razão determina de forma consciente as decisões voluntariamente escolhidas, os desejos, ao contrário, busca a realização do ato desejado, sem a análise do que isso pode vir a gerar, razão pela qual, deve a parte emocional da alma “dar ouvidos” à razão, pois assim, com as escolhas deliberadas o individuo realiza seus atos, consciente dos meios para se chegar ao fim, analisando as consequências para tanto. É pesando a razão que se pode conhecer o impacto que as escolhas deliberadas podem ter, sendo o homem bom ou mau quando suas ações promovem a mudança de seu caráter, podendo ser virtuoso ou vicioso, ou seja, se decide ser guiado pela razão ou meramente pelos desejos, sem que os mesmos sejam educados para pesar a razão em seus atos. 

Essa escolha deliberada é, segundo o filósofo, uma ação voluntária, ou seja, o seu principio motor está no próprio agente e o mesmo tem conhecimento das circunstâncias em que está agindo. Somente essas ações voluntárias podem ser consideradas na construção da virtude, uma vez que esta é a disposição ligada à escolha deliberada, voluntária. 

Nesse sentido, o indivíduo deve ser um bom juiz, uma vez que o mesmo só alcançará o fim desejado se saber escolher sobre o que é moralmente bom e agradável. É por isso que depende do indivíduo “praticar atos nobres ou vis, e se é isso que significa ser bom ou mau”, dependerá dele ser “virtuoso ou vicioso”.

Aristóteles procura mostrar que o valor moral dos atos depende da capacidade que a parte irracional da alma humana tem de ser ensinada pelos ditames da razão, ou seja, quando da harmonização dos desejos com a razão. Para tanto, pode-se formar a boa disposição com a realização da mediedade, ou mesmo formar o desejo racional. Essa formação, no primeiro caso, é dada pela educação e pelas leis, quando se promove disposições moderadas, onde as emoções não estão em excessos, podendo a razão imperar. Já na formação do desejo racional, as virtudes morais se dão quando o agente age, considerando as razões que ele próprio se dá, sendo, portanto, os atos voluntários, e as ações as escolhas e as deliberações do agente. 

A razão aqui apresentada não é aquela entendida por Sócrates e Platão, onde a mesma não tem o papel de distinguir o âmbito teórico e o prático. Essa distinção entre a razão teorética e o pensamento prático feita por Aristóteles está vinculada à definição que o Estagirita promove sobre a virtude moral: 


“A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha das ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (Aristóteles, EN, II 6, 1106b36). 


Para Aristóteles, assim como a alma irracional tem duas partes (a que ‘dá ouvidos’ à razão e aquela que é ‘surda’ à razão), a alma racional também tem duas partes, com realidades distintas, sabedorias práticas distintas e com virtudes distintas, sendo uma a parte cientifica (epistemonikon) e outra, a parte calculativa (logistikon), onde a investigação da primeira são as realidades invariáveis, e da segunda, as realidades que podem ser diferentes, que mudam, e que possibilita a prática, a experiência. 

A parte cientifica da alma racional tem como objeto o conhecimento científico, já a parte calculativa visa à percepção, tendo assim uma sabedoria prática (phronesis): 


“essa espécie (a prática) de sabedoria não se relaciona apenas com o universal mas também com os casos particulares, que se tornam conhecidos pela experiência (...) A sabedoria prática se relaciona com o fato particular imediato, que é objeto não do conhecimento científico mas de percepção” (Aristóteles, EN VI 8, 1142a13). (destaque nosso). 


Nesse sentido, a virtude da parte cientifica da alma racional é a procura pela verdade, a partir do conhecimento cientifico. Por sua vez, a virtude da parte calculativa da alma racional é a sabedoria prática, que consiste “em saber dirigir corretamente a vida do homem, isto é, em saber deliberar corretamente sobre o que é bem ou mal para o homem” (BOTTER, 2012, p. 59), ou nas palavras do Estagirita, “uma disposição prática, acompanhada de razão veraz, em torno do que é bem e mal para o homem”. (ARISTÓTELES, EN, VI 1, 1139a5). 

Nessa busca pela sabedoria prática, que promove a virtude da parte calculativa da alma racional, visa-se uma disposição prática que consiste na regra de escolha, onde se procura a correção do critério de escolha, como salienta AUBENQUE (2008, p. 61), visando deliberar bem acerca daquilo que é bom para o homem: 


“julga-se que seja característico de um homem dotado de sabedoria prática ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para ele, não sob um aspecto particular (...), mas sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa de um modo em geral” (Aristóteles, EN, VI 5, 1140a27). 


A sabedoria prática é uma virtude justamente por sua capacidade de deliberar no tocante às coisas que podem ser diferentes e que dependem de nós. Um desejo correto do fim, juntamente com uma boa deliberação acerca de quais e quantas são as ações e os melhores meios para alcançá-lo, faz com que essa ação seja virtuosa, ou seja, moralmente boa, pois o objetivo é certo e a sabedoria é prática, uma vez que escolhera os meios corretos.




04) O ANALFABETISMO MORAL: A MALDADE NA ÉTICA ARISTOTÉLICA


As diferenças entre os perfis, das pessoas viciosas, distinguidos por Aristóteles: 

1) Akolastos - Homem que visa apenas o prazer, impulsionado pelo desejo do agradável, e que de nenhuma maneira se arrepende por se comportar desta forma. Ele não é punido, faltando-lhe rigor, tendo indulgência excessiva consigo mesmo. 

2) Malakos - Homem que quer fugir da dor e por isso a evita maximamente, sendo mole e voluptuoso. 

3) Theriotes - Homem que apesar de aparentar ser humano é um animal, se colocando fora dos padrões humanos. É o polo posto ao ente divino, um monstro por excesso de vício. 

4) Akrates - Homem que é fraco de vontade, se perde guiado por uma cólera profunda e cega, cometendo o mal, embora saiba que é mal. 

5) Kakos - Homem que voluntariamente adquiriu o hábito do vício, agindo com excesso ou com falta relativamente aos prazeres e às paixões. 




A figura definida do malvado por Sócrates e a figura da pessoa injusta e feliz, que aparece na República: 


Sócrates na República apresenta a figura do malvado como sendo aquele homem que age em razão de sua ignorância, pois foi educado de forma incorreta ou porque vive um tipo de analfabetismo moral, onde suas vontades estão sempre em conflito com sua razão. Platão entende o malvado como a pessoa que age visando seus próprios interesses, não se preocupando com a cidade. Por não possuir sabedoria, não utiliza a racionalidade da alma ,sendo essa pessoa injusta, e também infeliz. O seu oposto, uma pessoa justa e feliz, é aquela pessoa que tem suas práticas mediadas visando à felicidade. 

A felicidade está relacionada com o conceito de justiça, que é a manifestação máxima do desejo. Por ser justo, essa pessoa também é feliz. Em Sócrates e Platão, a virtude estava relacionada apenas à razão, que governa as ações do ser humano. É em Aristóteles que a parte irracional da alma começa a ser considerada. Nessa nova concepção, a emoção 'dá ouvidos' à razão, e a virtude se manifesta com a correta deliberação, através da escolha. É nesse processo de mediedade/justa medida, entre a razão e a emoção, que se pode ter a figura do homem justo e feliz, bem como de seu oposto, aquele que vive nos extremos (seja da razão ou da emoção), sendo por isso, injusto e infeliz. 



O que mudou na tradição cristã em relação à tradição grega?


O homem na tradição grega age mal por natureza, não se arrependendo do que faz. Tendo um posicionamento sádico, ele está sempre disposto à prática do mal. Com seus atos, todos à sua volta são prejudicados. Aristóteles entende o malvado como aquela pessoa que, de forma voluntária, adquire o vício por hábito, sempre com excessos ou faltas, em relação à seus prazeres. Em suma, sua natureza é irremediavelmente má. 

Na tradição cristã, por sua vez, o homem mesmo sabendo o que é bom comporta de forma errada, uma vez que ele não consegue por si só dominar a profunda laceração e dissenso em relação à sua própria vontade que é boa, cometendo assim a maldade em seus atos. O grande diferencial é que a vontade boa do homem, no cristianismo, depende da graça divina presente na vida humana, para que ele consiga então não praticar o mal.



A relação entre virtude e felicidade: 


Num contexto onde viver uma vida feliz ou infeliz representava uma diferença significativa, a análise da ética antiga – sobretudo a aristotélica – a felicidade estava relacionada à concepção de eudaimonia, ou seja,“uma atividade própria da alma humana que se estende ao longo da vida e que todos os homens têm o direito de alcançar” (BOTTER, 2012, p. 72), o que se difere da atual concepção de felicidade, onde a mesma se manifesta em momentos isolados da vivência humana. 

Sócrates na análise do conceito de felicidade – na qual entendia ser o homem justo feliz e o injusto sumamente infeliz –, utilizou-se da ‘função própria do homem’. Para o filósofo, o argumento do ergon significava que cada homem tem uma função que pode realizá-la bem. Se a realiza bem, o faz com virtude, porém se a realiza mal, com vício. Dessa forma, um ente tem uma função a qual se pode atribuir uma virtude ou um vício. A alma, por exemplo, tem como função viver, e em razão disto, tem uma virtude, que é a justiça. Caso a pessoa seja injusta, logo a alma não terá uma virtude, e sim um vício. Conclui-se então que, vive bem quem age com justiça, e vive mal, quem age com injustiça. É feliz e vive bem quem é justo. É desditoso quem vive com injustiça. 

Aristóteles, na análise da eudaimonia, retoma ao conceito de ergon – onde o homem só atinge a felicidade autêntica quando exerce devidamente sua função –, porém de forma articulada. A felicidade para o Estagirita está relacionada à satisfação dos desejos, porém, a partir dessa consideração do argumento do ergon, sendo necessária a satisfação dos desejos com um acordo com a parte racional, uma vez que a razão é o atributo que distingue o ser humano. 

Utilizando-se da teoria da mediedade, Aristóteles entende que o homem só consegue evitar seus excessos quando a paixão ‘dá ouvidos’ à razão, existindo uma harmonia daquela com a razão, onde as emoções são transformadas por ela. Essa harmonização não é acidental, pelo contrário, faz parte da constituição da felicidade própria do ser humano. A eudaimonia é, portanto, essa “satisfação do desejo ‘transformado’ pela razão” (BOTTER, 2012, p. 73). 

Portanto, pode-se concluir que a concepção aristotélica de felicidade humana é aquela onde há o cumprimento da função própria do homem (ergon) e o comportamento de forma correta (mediedade), através de um posicionamento ético-racional. A razão prática, nesse contexto, é busca pela determinação do meio-termo, onde os desejos humanos estão correlacionados à racionalidade. 

É feliz o homem que age satisfazendo seus desejos, ‘dando ouvidos’ porém aos ditames da razão, escolhendo por deliberação suas ações. A deliberação de um fim não pode se dar, visando qualquer um. É preciso escolher os melhores meios para que chegar ao melhor fim, sendo este aquele que se conforma com a racionalidade. O contrário disto é ser malvado, e consequentemente, infeliz. 

O malvado utiliza-se de um preciso raciocínio na escolha dos melhores meios para alcançar o pior fim. Por desconhecer o arrependimento e por não ter conflitos entre suas normas de vida e os seus desejos corruptos, o malvado vive uma ética aleijada e perturbada, pois sua mente é desta forma, além de sua razão ser confusa e sua consciência moral obscura, vivendo sozinho e sem amizades. 


BIBLIOGRAFIA:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2003. 

AUBENQUE, P. A prudência em Aristóteles. Trad. Marisa Lopes, São Paulo: Discurso Editorial, 2008.

BOTTER, Bárbara. Ética 1: Guia de Estudos. Lavras. UFLA, 2012. 

CASERTANO, Giovanni. Uma Introdução à República de Platão. São Paulo: Paulus, 2011. 

DESCLOS, Marie-Laurence. É possível ser corajoso e justo sem ser sábio?. Trad. Alice Bittencourt Haddad. In: Kléos. Revista de Filosofia Antiga. Rio de Janeiro: Pragma – UFRJ, 5, 6, 2001/2002, p. 9-22.

GAUTHIER, R. N. & JOLIF, J. Y. L´Étique à Nicomaque: Introduction et commentaire. Paris, Publications Universitaires de l´Université de Louvain, 1970.

PEREIRA, R. R. Kant, Aristóteles e a razão prática. Estudo para uma leitura aretaica da Ética Kantiana. Tese de doutorado defendida na PUC-Rio no ano 2010. Orientador de Doutorado: prof. Edgar José Jorge Filho; Co-orientador: profa. Barbara Botter.

PLATÃO. A República. Livros I, II, e IV. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

ZINGANO, M. Aristóteles. Ethica Nichomachea I 13-III 8: Tratado da Virtude Moral. São Paulo: Odysseus, 2008. 



OBSERVAÇÃO:


Este texto é um resumo que produzi com o material de aula de disciplina “ÉTICA I” da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA – Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares, produzido em 10/07/2012.


VEJA TAMBÉM:





4. Ética II - David Hume e a Teoria sobre o Sentimento Moral na Filosofia Moderna

5. Ética III - Imannuel Kant e o Fundamento da Metafísica dos Costumes na Filosofia Moderna

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