segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA – PARTE 4 – AGOSTINHO


Agostinho de Hipona (354 a 430 d.C) é o filósofo que representa a Filosofia Tardia, levando em considerando a divisão das épocas pela historiografia filosófica. No que se refere ao problema da relação entre a teoria e a prática em Agostinho, faz-se necessária a análise de dois trechos de sua obra A Cidade de Deus, onde o mesmo apresenta três modos de vida a partir de dois mandamentos cristãos: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Tais mandamentos expressam a busca pela contemplação do divino (teoria) e o engajamento no mundo pela preocupação com o próximo (prática).

Semelhantemente à Platão, Agostinho não faz uma diferenciação entre as ciências para estabelecer tais modos de vida. De igual forma, o filósofo concebe o entendimento de que a prática é subordinada à contemplação. Segundo Arendt (1981, p. 22) Agostinho é até mais veemente em estabelecer essa relação de subordinação, porém, como o filósofo acreditava “num outro mundo cujas alegrias se pronunciam nos deleites da contemplação”, este “conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vida activa à sua posição subalterna e secundária”.

Segundo Agostinho (2002) o homem pode assumir a

“vida ociosa, a exemplo dos que por possibilidade e gosto se entregaram aos estudos, ou vida de negócios, como os que juntaram o estudo da filosofia com o governo e a administração da república, ou vida mista, como os que dedicaram parte da vida ao ócio erudito e parte do negócio necessário”.

Ao estabelecer tais três tipos de vida (o ocioso, o ativo e o misto), Agostinho ressalta que

“interessa considerar o que o amor à verdade nos dá e o que o dever de caridade nos pede. Ninguém deve, com efeito, entregar-se de tal maneira ao ócio, que se esqueça de ser útil ao próximo, nem de tal maneira à ação, que se esqueça da contemplação de Deus (...). Por isso, o amor à verdade busca o ócio santo e a necessidade do amor aceita devotar-se aos justos negócios. Se ninguém nos impõe semelhante ônus, devemos entregar-nos à busca e à contemplação da verdade. Se alguém no-lo impõe, devemos aceitá-lo por necessidade da caridade. Mesmo em tal caso não se deve abandonar totalmente o prazer da verdade, para não acontecer que, privados desse doce apoio, a necessidade nos oprima” (AGOSTINHO. A cidade de Deus, XIX, xix). 

O filósofo entendia que os dois preceitos cristãos precisam ser levados em consideração na escolha de qualquer um dos modos de vida, e que a vida contemplativa só poderia ser afetada se o ônus da ação no mundo for imposto. Desta forma, a vida ociosa é a vida contemplativa ou teorética e, a vida de negócios, a vida ativa ou a prática. Amar a verdade seria o amor a Deus, através dessa vida ociosa. E o amar ao próximo seria o dever da caridade, ou seja, a ocupação com atividades públicas.

O grande dilema seria como amar à Deus, que se encontra extramundo, e ao mesmo tempo, amar ao próximo, a partir do engajamento no mundo?

Arendt (1997), em O conceito de amor em santo Agostinho, apresenta que para Agostinho havia dois principais modos de compreensão dos dois mandamentos, que se fundamenta na concepção da dupla origem do homem: a divina e a histórica. A primeira, à origem do homem em Deus, e a segunda, a origem terrena do homem, em Adão.

A origem divina do homem diz respeito à busca da felicidade e que esta reside em Deus. Por ser Deus a origem e o fim do homem, a busca pelo divino feita pelo homem visa à felicidade, que está no Divino, e não no próximo. Este Ser Supremo é o criador de todas as coisas, inclusive da felicidade. Essa busca se dá pela interioridade, pela inspeção da memória, da criatura racional que tenta dissolver sua identidade histórica com o fito de elevar-se à eternidade.

Nesta concepção de origem do ser humano, amar a Deus é a realização da busca pela felicidade, através do isolamento e por meio da inspeção do espírito, do diálogo consigo mesmo para descobrir em sua interioridade a natureza perdida quando do pecado, ou seja, a sua natureza de criatura do Divino.

O encontro com o próximo, nessa concepção, se dá no momento em que ele, o ser humano, renuncia sua identidade mundana, por entender que é uma criatura do Ser Supremo. O amor ao próximo é um ato que ocorre primeiro porque se ama o ser do próximo como a si mesmo, ou seja, por ser o próximo como o próprio ser humano que o ama: criatura do Divino, uma essência, que possui a mesma natureza comum a todos os seres humanos. Quando se conhece a si mesmo enquanto criatura de Deus, pode-se amar ao próximo em seu ser, também criatura do Divino.

Essa identificação com o outro ocorre em plena quietude, no isolamento contemplativo do ser humano, razão pela qual essa relação de amor ao próximo, nessa concepção, é uma relação sem ação, que se desenvolve numa dimensão metafísica.






Já na origem histórica do homem, a terrena em Adão, amar a Deus ocorre através do ato do Ser Supremo face ao primeiro fato histórico ocorrido, que é a queda de Adão. Tal queda é símbolo do desejo do homem em romper a participação ontológica com o Divino. Foi a aspiração do homem em deixar de amar a Deus, fazendo com que os homens tenham uma igualdade de situação, ou seja, “todos os homens são iguais (aequales), igualmente pecadores” (Arendt, 1981, p. 156).

É nesse momento que Deus, em sua Graça, encarna na figura do Cristo, fazendo com que o homem possa retornar à sua origem verdadeira, restabelecendo a mediação entre Ele, o Ser Supremo, e o homem, que fora interrompida pelo pecado. Este fato histórico, a revelação divina em Cristo, significou a possibilidade de ser ter uma ponte salvífica, de tal modo que não é possível desvincular Cristo de Adão, já que este representa a queda e aquele, a redenção face à queda.

Em razão da encarnação do Cristo, justifica-se amar ao próximo como a si mesmo. O amor de Deus, com o ato sacrificial de Cristo, igualou todos os descendentes terrenos de Adão através da Graça. Arendt afirma que “antes da vinda de Cristo o parentesco de todos os homens era adquirido de Adão pelo nascimento (generatione), aqui, é a graça divina que, relevando-se, torna todos os homens iguais ao mostrar-lhes o seu passado comum no pecado”. (1981, p. 162 e 163).

Desta forma, amar ao próximo significa lembrar constantemente a necessidade da humildade, e a exemplo de Cristo, ajudar ao próximo que ainda pode viver (ou ter retornado ao) no pecado, ajudando-o na conversão, fazendo com que possa ter sua relação com o Divino refeita. Esse amor ao próximo se dá com a prática, realizada com o outro, com a imitação do Cristo, ao conduzi-lo a Deus. O pecado nesse caso é fugir para a solidão, pois com isto, priva-se o outrem da possibilidade da conversão. (Arendt, 1981, p. 164 e 165).

Essa relação social com o próximo tem por objetivo (e é secundária) à relação com Deus. De igual forma, tal relação é provisória, uma vez que ao chegar à eternidade – compreendida como a redenção última e definitiva (Arendt, 1981, p. 169) – cada ser humano terá sua relação direta com o Criador. E por fim, essa relação de amor ao próximo não tem fim em si mesmo, visa à contemplação do divino. Todas as ações são orientadas e subordinadas à contemplação, ao metafísico, ao Divino.

No que se refere aos modos de vida, o ocioso é preferível a todas as outras, uma vez que possibilita o bônus da contemplação. Porém, segundo o filósofo, se o ônus do engajamento no mundo se fizer necessário, é preciso aceitá-lo em função da caridade, do amor ao próximo.

Ressalta-se que, segundo Silva Filho (2011, p. 53 e 54), diferentemente de Platão, o cristão agostiniano ao adquirir progressivamente consciência de sua própria danação e distância da verdade, não pretende nenhuma forma de governabilidade e de ordenança sob os homens. Portanto, não visa critérios de fabricação, uma vez que não há intenção de se criar uma cidade ideal. O que se deseja é somente adentrar à Cidade de Deus, o que significa alcançar a eternidade e a libertação radical da sua condição de temporalidade, ou seja, ter a restituição da sua natureza perdida pelo pecado, com a contemplação do Divino.

BIBLIOGRAFIA:

AGOSTINHO. A Cidade de Deus: contra os pagãos. 2ª parte. Trad. Leme, O. P. Petropólis: Vozes, 2002, XIX, xix.

ARENDT, H. O conceito de amor em santo Agostinho. Trad. Dinis, A. P. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

_________. A condição humana. Trad. R. Raposo. São Paulo: EDUSP, 1981.

SILVA FILHO, Luiz Marcos da. Nota sobre contemplação e ação em Agostinho. In: Sobre a relação entre teoria e prática na história da filosofia: Platão, Aristóteles, Agostinho e Maquiavel. Lavras: UFLA, 2011.

OBSERVAÇÕES:

1. Este texto é um resumo que produzi com o material de aula da disciplina "Introdução à Filosofia" da Graduação em Licenciatura para Filosofia da UFLA - Universidade Federal de Lavras EaD Campus Governador Valadares. Produzido em 12/12/2011.

2. A primeira parte dessa série é introdutória, explicando a problematização da relação entre a teoria e a prática, e você encontra aqui. Já a segunda parte, analisando a mesma problemática, a partir da nota sobre a Teoria das Idéias e da Contemplação e Ação em Platão, você encontra aqui. E a terceira parte, analisando a mesma problemática, a partir da nota sobre a Vida Teorética e a Vida Polítca em Aristóteles, você encontra aqui

3. Na próxima e última parte, iremos analisar a mesma problemática, a partir da nota sobre teoria e prática em Maquiavel. 

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